Spoilers de Ciclo da Morte.
Esta cena se passa uns poucos anos antes do começo de Ciclo da Morte. É o “começo” de tudo, por assim dizer (e ela não foi reescrita. Avisados estão).
A vida é feita de escolhas. E cada uma delas tem o potencial para afetar não apenas a nossa própria vida, mas também a de todos ao nosso redor. Eu deveria ter me lembrado disto. Nunca se escapa das consequências, não importa quando tempo se passe.
Engolindo as lágrimas, olhei para meu celular mais uma vez. Dezenove chamadas não atendidas. E este número só iria aumentar. Não era para ser assim. Este dia deveria ser feliz, cheio de comemorações. Meu aniversário de dezoito anos. Ao invés disso, estava pagando o preço pelas minhas escolhas.
Meus pais estavam mortos. Tinha sido acordada pelo toque do celular, a voz impessoal do outro lado me dando a notícia. Um acidente de carro, disseram. Eles haviam morrido na hora.
Havia me esquecido… Ou melhor, tivera esperanças de que apenas eu seria afetada. Ilusão. Tinha feito minha escolha, renovado um juramento que sabia que me prenderia por toda a minha vida, mais uma vez.
“Você saberá quando chegar a hora de fazer sua parte.”
As palavras frias da Morte estavam gravadas em minha memória. Só não tinha esperado que outras pessoas pagassem por minha escolha.
— Kelene?
A voz que me chamava era familiar e levantei a cabeça para encarar Artur. Um colega da faculdade, apenas isto. Ele hesitou, antes de vir se sentar ao meu lado.
— Eu soube — ele murmurou. — Não imaginei que te veria aqui hoje.
— Não, eu deveria estar no velório, não é? — Minha voz era amarga, sabia que a culpa era minha, mesmo que ninguém mais suspeitasse. — Assistir enquanto todos aqueles abutres fingem se importar comigo, fingem que se importavam com meus pais, mas no fim das contas só querem estar próximo de quem tem o dinheiro.
Artur arregalou os olhos, mas não discutiu. Era por isto que tínhamos nos tornados amigos, até certo ponto. Ele também percebia os jogos de interesse e os desprezava.
O celular vibrou, e o desliguei. Não atenderia as ligações de condolências. Não responderia aos que perguntavam onde estava. Eu não tinha o direito de estar no velório, nem de chorar por eles. Um acidente, diziam. Mas eu entendia. Aquilo era apenas uma forma conveniente de disfarçar o que realmente acontecera, esconder qualquer estranheza.
A Morte sabia que eu entenderia o recado.
Balançando a cabeça, me levantei, sem falar nada. Ainda senti os olhos de Artur nas minhas costas enquanto ia em direção à saída da faculdade.
Era hora de cumprir minha parte do acordo.
Encontrei o homem quase na saída do campus. A forma da Morte garantir que eu fizesse o que era preciso? Esperava que sim. Colocando uma expressão assustada no rosto, me aproximei dele.
— É você! — Falei, com um toque de histeria na voz.
Ele olhou ao redor, tentando ver com quem eu falava, antes de franzir a testa, sem entender. Perfeito. Segurei seu braço, tentando parecer ainda mais assustada.
— Por favor! Só você pode me ajudar!
— Me solte, garota! — Ele soltou o braço com um safanão.
Voltei a segurar seu braço, agora colocando desespero na minha expressão. Por dentro, estava sorrindo. Amador. Qualquer um com um mínimo de sensibilidade seria capaz de sentir sua ligação com a Morte com um toque. Era este o preço de se usar os poderes de morte para estender a própria vida.
— Por favor! A Morte, ela vai me obrigar a prestar o juramento!
Ele parou, olhando ao redor mais uma vez, antes de me puxar para uma das ruas menos movimentadas do campus e então para o meio das árvores. Perfeito.
— O que você falou sobre a Morte? — ele perguntou, agora soando preocupado. — Que juramento?
Balancei a cabeça, me endireitando. Reuni o poder rapidamente, a arma que a Morte havia me dado para cumprir aquela missão, e o enviei para o homem. Ele cambaleou, se apoiando em uma árvore, antes de voltar a me encarar.
— O que você fez?
— O que alguém já deveria ter feito há muito tempo — respondi, com o tom frio que aprendera a usar muito tempo atrás, em outra vida. — Garantindo que você também esteja preso ao ciclo.
Ele tentou avançar, mas o poder estava agindo dentro dele, lentamente consumindo os anos a mais que ele negociara. Uma Mão Branca deveria sempre se manter humana, e não aquela abominação que o homem estava começando a se tornar. Todos que serviam à Morte aprendiam rapidamente que existe um ciclo e que ninguém escapa dele.
— Sabe que vai morrer logo depois de mim, por ter feito isto? — Ele perguntou, fazendo uma careta de dor.
Sorri, entendendo o que ele dizer. Aquele era o tipo de poder que exigiria a própria vida, se alguém despreparado tentasse usá-lo.
— Não. Tenho direito de usar este poder, ele não vai me consumir.
— Não sabe em quê está se metendo — ele ainda falou. — Não faz ideia do preço que vai ter que pagar.
— Já fui a Mão Branca antes — respondi. — E já paguei o preço pelo meu juramento.
Dei as costas ao homem, me afastando com passos rápidos. Ouvi o barulho do seu corpo caindo no chão ao mesmo tempo em sentia os poderes que haviam sido meus um dia voltarem para mim. Com um suspiro resignado, puxei as mangas da minha blusa, escondendo as marcas que tinham acabado de surgir na parte interna dos meus braços, os sinais visíveis do meu acordo com a Morte.
Algum dia alguém descobriria os ossos e ele seria apenas mais uma das vítimas de algum assassino que jogara seu corpo entre as árvores.
E eu… Eu voltaria a ser quem havia sido séculos atrás.